ANA DIAS BATISTA

Vistosa, 2008

colaboração com Laura Andreato e João Loureiro

Galpão alugado na Barra Funda, São Paulo

Prêmio Conexão Artes Visuais – Funarte – Ministério da Cultura

 

A exposição se estrutura em torno de uma grande vitrine de madeira, alumínio e vidro que divide o espaço, partindo em diagonal das portas do galpão e conduzindo o visitante por uma área restrita de circulação. A configuração dessa vitrine remete a uma estratégia utilizada no comércio para atração de público; seguindo a vitrine a partir da rua, o transeunte logo se vê no interior do “estabelecimento”, sem que uma passagem tenha sido marcada. Na Vistosa, entretanto, não há acesso ao interior; a vitrine o isola completamente, estabelecendo pontos de vista fixos. Para além dela, o piso é elevado e forrado com carpete azul. O espaço de circulação, por sua vez, tem o chão inteiramente revestido por um áspero capacho de fibra, que o mantém numa condição intermediária entre exterior e interior.

Na diagonal direita da vitrine, a obra 1, 2, 3, de Ana Luiza Dias Batista, propõe uma transição sutil entre a apropriação de soluções e materiais usuais às vitrines comerciais e as operações de representação que orientam grande parte dos trabalhos da exposição. Trata-se de três caixas contíguas revestidas de eucatex branco e iluminadas com lâmpadas fluorescentes, fixadas contra o vidro. A primeira caixa, pequena e horizontal, poderia ser uma vitrine para exposição de joias ou relógios, e é feita da chapa perfurada de eucatex que se encontra no mercado, com furos de 50mm. A segunda é mais larga e profunda, e bem mais alta, assemelhando-se a uma vitrine para exposição de objetos de decoração. Ela também é revestida de chapas perfuradas de eucatex, porém os furos, feitos sob encomenda, são maiores e mais espaçados que os da caixa anterior, como se a acompanhar a variação de tamanho. A terceira caixa é mais larga e profunda que a segunda, e atinge a altura da vitrine geral, 190cm; vertical, ela poderia comportar um manequim. Ali há furos ainda maiores e mais distantes sobre as chapas de eucatex. É como se a variação de tamanho das caixas, que respeita configurações funcionais (para exposição de joias, objetos de decoração ou roupas), resultasse de uma diferença de escala, e estivéssemos experimentando graus sucessivos de aproximação a um único referente, do qual os furos seriam lastros.

A obra Quebra-mar, de João Loureiro, está instalada numa parede ao fundo da vitrine, de frente para a rua. Ela é composta por dois elementos: um toldo de lona e uma “onda” de carpete, ambos azuis. O toldo tem forma tradicional retangular com uma franja em “gotas” paralelas. A linha que percorre a parte de baixo dessas gotas, formando picos entre cada uma delas, sugere uma representação codificada de água, como costumamos ver em desenhos infantis. A “onda” é formada por uma elevação curva do piso da vitrine, um tablado revestido de carpete azul. A borda superior dessa curva é recortada com a mesma codificação de água, e está colocada exatamente embaixo da borda do toldo. As parábolas sequenciadas da representação de água da onda são exatamente as mesmas das gotas do toldo, de forma a sugerir que as bordas do toldo e da onda poderiam se encaixar. A “onda”, representação deliberada e reconhecível, torna visível o desenho de água (involuntário) do toldo. Ao fazer com que apenas nesse trecho o chão se eleve para formar uma “onda”, o trabalho transforma-o todo, por instantes, em mar. Além disso, ele se sobrepõe a um outro trabalho da exposição, uma pintura de pedras, construindo a relação que o nome Quebra-mar explicita.

Sobre a vitrine, no vidro de onde se observa frontalmente o Quebra-mar, há uma pequena inscrição jateada a meia-altura, trabalho de Ana Luiza Dias Batista: lê-se a expressão PRIMEIRO PLANO. Ao mesmo tempo em que se relaciona com a sugestão de paisagem da obra ao fundo, a expressão qualifica o pano de vidro onde se inscreve, ressaltando-lhe a condição mediadora na experiência da exposição.

Uma pintura reveste três paredes em “u” no fundo do galpão, expandindo-se parcialmente sob o Quebra-mar. Trata-se de uma pintura de uso externo, um padrão de “pedras” como os que decoram fachadas de estabelecimentos comerciais e de serviços na cidade de São Paulo, executado por um grafiteiro. Esse padrão simula revestimentos com pedras reais, muito mais caros e trabalhosos, e possivelmente surgiu para uniformizar muros sujos ou pichados guardando alguma sugestão de “natureza”. A simulação, entretanto, ganhou autonomia e atualmente pode ser encontrada até sobre paredes de pedras reais. Curiosa inversão de estatuto. Nesse trabalho de Ana Luiza Dias Batista, as pedras representadas variam de tamanho a partir do centro da parede frontal, ampliando-se em direção às bordas. Cria-se uma falsa perspectiva, um “efeito” que se soma aos jogos de luz e sombra em cada pedra e à configuração em “u” da área ocupada pela pintura no pleito pela tridimensionalidade. Mas o artifício não é levado às últimas consequências: a variação de tamanho é interrompida nas paredes perpendiculares e é retomada apenas quando a pintura escapa do nicho em “u”, avançando horizontalmente. A pintura de uso externo trazida para o interior de um galpão e para trás de um vidro assevera o jogo de interioridade e exterioridade que já havia orientado a configuração da vitrine.

Na parede do lado esquerdo dessa obra de Ana Luiza Dias Batista está Verão Luminosos, de Laura Huzak Andreato. O trabalho efetua operação semelhante à realizada pela pintura de pedras, ao trazer luminosos utilizados em fachadas de estabelecimentos comerciais para uma parede no interior da vitrine. Os luminosos estão organizados como em um mostruário, sugerindo uma analogia entre os sistemas de organização, catalogação e exposição utilizados em vitrines comerciais e os utilizados em vitrines de museus. Nesse trabalho, o signo – empregado no lugar de um objeto, para designá-lo – acaba tornando-se, ele próprio, o objeto em exposição na vitrine. De um total de oito luminosos, três trazem palavras escritas: Diamante, Laguna e Flamingo, e cinco trazem imagens: um sol poente, quatro estrelas enfileiradas e ligadas entre si, uma nuvem, um círculo branco e uma pedra.

A escolha das palavras não foi orientada por seu significado literal, mas por uma segunda camada de sentido agregada a elas pelo universo ao qual são geralmente associadas. Esses termos sugerem nomes de estabelecimentos como hotéis, motéis, cassinos, locais turísticos em geral e, ao fazerem referência a elementos da natureza, buscam conferir atributos como luxo, conforto, exclusividade e beleza aos locais que batizam. As ilustrações presentes nos luminosos, que figuram elementos da paisagem, também lidam com a ideia de natureza de maneira indireta, pretendendo menos ser imagens de primeira mão desses elementos do que alusões à forma como eles são representados no contexto acima descrito. Dois luminosos possuem ainda uma outra característica: relacionam-se com os trabalhos adjacentes, tornando-se zonas de intersecção semântica. O luminoso em formato de pedra localiza-se em uma área espacialmente intermediária entre a parede que expõe os outros luminosos e a que exibe a pintura de pedras. O trabalho reproduz exatamente a forma e a cor de uma das pedras (sobre a qual está instalado), porém sem os grafismos responsáveis pela ilusão de luz e sombra na pintura. Ocorre uma simplificação do desenho, resultante da fusão entre duas linguagens opostas: a economia e estilização de traços dominantes na área da comunicação visual e o rebuscamento típico desse determinado padrão de grafite, que se empenha em simular pedras reais.

O luminoso branco em formato circular interage com outro trabalho da própria artista, Laura Andreato, Cosmorama. Essa obra é uma intervenção realizada diretamente em determinada área do vidro, sobre a qual é aplicado um filme translúcido preto e são feitos furos de largura variada, reproduzindo o desenho de quatro constelações que podem ser vistas no céu no mês de agosto. Instalado atrás do vidro, o luminoso circular representa a lua cheia e sua luz branca atravessa os buracos, fazendo com que as estrelas se iluminem. Duas caixas de som instaladas no piso reproduzem ruídos que remetem ao repertório dos filmes de ficção científica. O som também atravessa os buracos, completando o trabalho. Em toda a vitrine não há acesso ao interior e a visão do que está dentro dela é tudo o que se oferece ao visitante. Nesse pequeno trecho a visão é velada, fazendo com que a experiência do trabalho aconteça na superfície do vidro, pela informação que consegue atravessá-lo. As estrelas transformam-se numa espécie de “respirador”, único lugar onde a vitrine torna-se de alguma maneira permeável a outras percepções que não a do olhar. O aspecto sonoro do trabalho, que remete a um ambiente fantástico, nos dá pistas sobre a natureza da vitrine: as regras que valem dentro dela não são as mesmas que operam no mundo real.

Na coluna central da fachada do galpão, que separa as duas portas de ferro, está instalada a obra Preciosa, de João Loureiro, uma vitrine em forma de pedra preciosa lapidada. Uma estrutura de metal perfaz as arestas dessa joia, enquanto vidros incolores correspondem às suas facetas. Dentro da vitrine estão três prateleiras de vidro; no fundo, um espelho colorido indica a gema escolhida. Essa vitrine é retrátil: duas grandes dobradiças permitem que ela gire de dentro para fora do galpão – portanto, para a rua e para os passantes – toda manhã. À noite, quando a exposição fecha, a vitrine é girada novamente para dentro, possibilitando que se abaixem as portas de ferro. Desse modo, Preciosa procura expandir o espaço “funcional” para a calçada, apropriando-se do procedimento de algumas lojas do centro da cidade de São Paulo. Aquilo que poderia estar exposto – a joia – é incorporado à forma do continente, que se torna, ele mesmo, um produto. Encavalam-se a vitrine e seu possível conteúdo. Além disso, Preciosa faz coincidirem as qualidades vítreas da vitrine e da pedra polida, reiterando a relação com ambos os referenciais ao incrustar-se no imóvel como uma pedra num anel.
Preciosa faz da representação da gema o ponto de partida para a apreensão da vitrine como sistema de exposição.

  • Vista da fachada

  • Trabalhos dos três artistas ocupavam o galpão, relacionando-se pontualmente, por contiguidade

  • Foi construída uma vitrine que isola o interior e delimita o espaço de circulação do visitante, revestido por um capacho de fibra

  • ALDB, "1, 2, 3", três vitrines interligadas, revestidas com chapas de eucatex com furos de diâmetros e distâncias alterados em ordem crescente

  • "1, 2, 3"

  • "1, 2, 3"

  • ALDB, "Primeiro plano", vidro jateado

  • "Primeiro plano"

  • "Primeiro plano"

  • ALDB, "Parede de pedras", pintura nas paredes, feita sob encomenda. À esquerda, ALDB e Laura Andreato, "Pedra luminosa"

  • "Parede de pedras"

  • "Parede de pedras"

  • Revista